Por Pe. Helio Fronczak
Professor de Filosofia na Faculdade Católica de Belém (Facbel)
A crise ambiental, para além de suas dimensões científica, econômica e social, convoca-nos a uma profunda revisão da nossa espiritualidade. A fé cristã, longe de ser alheia a esta realidade, oferece um caminho profundo para uma espiritualidade que reconhece a sacralidade da criação e a interconexão de tudo que existe. É um convite a redescobrir Deus não apenas na transcendência, mas também imanente em cada criatura, em cada ecossistema, na beleza intrínseca da nossa Casa Comum.
Historicamente, a teologia da criação, por vezes relegada a um segundo plano, emerge hoje com renovada urgência. A crise ecológica nos impele a uma redescoberta de passagens bíblicas que celebram a bondade original da criação de Deus (Gênesis 1), a sabedoria divina manifestada na natureza (Salmos 104) e o chamado do ser humano não como dominador despótico, mas como guardião e cultivador (Gênesis 2,15). Esta redescoberta não é meramente acadêmica; ela nos permite enxergar o mundo natural não como um mero recurso a ser explorado, mas como um sacramento, um sinal visível da graça invisível de Deus, digno de reverência e cuidado.
Nesse contexto, os conceitos de “enraizamento” e “encarnação” do filósofo personalista Emmanuel Mounier adquirem uma dimensão ecológica singular. O “enraizamento” remete à necessidade humana de pertencer, de estar ligado a um lugar, a uma comunidade, a uma história. Ecologicamente, isso significa reconhecer nossa interdependência com a terra, com seus ciclos, com a vida que nela pulsa. Não somos seres isolados, mas parte integrante de uma teia da vida, e nossa saúde espiritual e física está intrinsecamente ligada à saúde do ecossistema que nos abriga. Enraizar-se, ecologicamente, é sentir-se parte da criação, amar o chão que pisamos e as criaturas que o habitam. Por outro lado, a “encarnação”, para Mounier, expressa a vocação do espírito a manifestar-se e a agir, concretamente, no mundo. No plano ecológico, isso nos chama a não apenas contemplar, mas a “encarnar” uma ética de cuidado e responsabilidade. Não basta reconhecer a sacralidade da criação; é preciso agir. É transformar a admiração em atitudes de proteção, a compaixão pelos que sofrem em ações de justiça ambiental. A fé se torna viva e operante quando se materializa em escolhas que respeitam os limites planetários, em estilos de vida mais sóbrios e em ações que promovem a restauração da biodiversidade e a equidade social. A espiritualidade, assim, não se retira do mundo, mas se engaja nele, transformando-o.
Para cultivar essa relação mais contemplativa e ética com a natureza, práticas espirituais tornam-se essenciais. A contemplação da natureza, o viver mais consciente e menos apressado, a oração pelos ecossistemas e pelas criaturas, o jejum de consumo excessivo, o envolvimento em mutirões de plantio ou limpeza, a gratidão pelos alimentos que nos sustentam – tudo isso pode aprofundar nosso sentido de pertencimento e responsabilidade. São pequenas grandes atitudes que reorientam nossa interioridade e nos preparam para o engajamento exterior.
Na Amazônia, essa espiritualidade ecológica já é vivida de forma exemplar em diversas comunidades, especialmente entre os povos indígenas e as populações tradicionais. Suas culturas, suas sabedorias ancestrais e suas práticas de vida revelam um profundo enraizamento na terra, uma relação de respeito e de reciprocidade com a floresta, os rios e seus seres. A sua forma de viver e de se relacionar com o ambiente é um testemunho vivo de uma espiritualidade que reconhece a interconexão de tudo e a sacralidade da criação. Eles nos ensinam que a preservação do meio ambiente é inseparável da preservação da vida, da cultura e da dignidade humana.
Povo Krikati – Aldeia São José – Montes Altos (MA) – Foto: Eanes Silva
Para que essa espiritualidade ecológica floresça e frutifique em escala global, é crucial a cooperação de todos os grupos: grandes instituições religiosas, movimentos eclesiais médios e pequenas comunidades de base, associações laicas e iniciativas individuais. A dimensão da crise exige uma resposta plural e sinérgica. As grandes instituições podem oferecer reflexão teológica profunda e diretrizes pastorais; os movimentos médios podem articular ações em maior escala; e as pequenas comunidades são o berço onde a espiritualidade se vive no cotidiano, nas relações mais próximas. A união de todas essas forças, cada uma com sua especificidade e contribuição, é o que nos permitirá efetivamente enraizar nossa fé na Casa Comum e encarnar a esperança em um futuro de cuidado e justiça para todos. A espiritualidade ecológica não é um luxo, mas uma necessidade urgente. Ela nos oferece os fundamentos para uma conversão integral – ecológica e humana – que nos permita habitar o planeta de forma mais harmoniosa, respeitosa e, acima de tudo, amorosa.
