A fé do povo amazônico é bela e viva. Nas margens dos rios, no meio das florestas e nas ruas das cidades, ela se expressa em rezas, promessas, círios e caminhadas com imagens sagradas que unem gerações em torno de uma esperança comum. Quem já participou de um momento assim sabe o quanto o coração se aquece ao ver a imagem de Nossa Senhora passando e as lágrimas correndo nos rostos marcados pela vida.
Em Santarém, há poucos dias, a presença da Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Nazaré mobilizou a cidade e mais uma visita. Maria passou por nossas ruas e comunidades, como quem visita e consola. Mas ela não passa apenas: ela fica. Como diz a canção popular que animou a peregrinação:
“Nazaré chegou por aqui, e aqui já era aqui.”
Essa presença permanece porque aqui, em nossa História e histórias, há “outras Nossas Senhoras”, das Dores, das Graças, do Perpétuo Socorro, da Saúde, que habitam nossa terra, das quais, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a padroeira da cidade e Arquidiocese de Santarém, que acompanha o povo em sua caminhada de fé, como símbolo maior das peregrinações, procissões e romarias.
Mas é preciso perguntar, com respeito e carinho, diante de tantas expressões de Fé, declarações de carinho, emoções, gritos e lágrimas, ritos e rituais: o que estamos buscando nesses gestos? O povo sofrido sabemos que, em suas dores, doenças e enfermidades, problemas familiares e financeiros, dentre outros, clama por si em suas angustias, ansiedades, depressão ou pânico, uma resposta ao seu penar no peregrinar. Mas, e nós lideranças, animadores, coordenadores e promotores desses momentos, estamos nutrindo em nós e no povo um verdadeiro encontro com Deus ou apenas repetindo práticas que nos dão alívio imediato?
Temos visto manifestações várias em adorações, caminhadas, carreatas, bicicleatas, cercos de Jericó, congressos, cristovais, motociatas, novenas diversas, terços dos homens, dentre outras manifestações presenciais ou midiáticas, em que, muitas vezes, se misturam devoção e devocionismo. E qual a diferença, para sabermos discernir e edificar ainda mais nossa Fé?
A DEVOÇÃO QUE TRANSFORMA
A devoção autêntica é uma resposta de amor ao Amor misterioso de Deus, que se revela, em especial em Cristo Jesus seu Filho, presente na Palavra, na Eucaristia e no Pobre (doente, com fome, na prisão, nu, peregrino). Ela nasce no coração e se transforma em oração, cuidado com o próximo, compromisso com a justiça social e com a criação. A devoção mariana, por exemplo, nos faz olhar para Maria e dizer: “Quero ser como ela, serva do Senhor e do Reino.” Na devoção há um respeito ao sagrado, aos mistérios da fé e deve haver uma busca e zelo cada vez maior pela sacralidade de nossas expressões e gestos e pelos sacramentos, sinais visíveis do Deus invisível entre nós, em especial em sua Igreja.
O RISCO DO DEVOCIONISMO
Já o devocionismo é um perigo sutil e acontece quando a fé se torna apenas uma busca por bênçãos ou soluções mágicas para problemas profundos, como carências afetivas e outras necessidades subjetivas reais, mas muitas vezes imaginárias e/ou até fantasiosas, românticas e supersticiosas. É quando reduzimos Maria, por exemplo, a uma “porta de graças instantâneas”, esquecendo que ela é, antes de tudo, a Mãe que nos inspira a agir, inclusive nas dores e na luta pelos desvalidos e pobres deste mundo. Ela que na obra da Visitação, em especial á Isabel sua prima, se dirige apressadamente às montanhas para saudar, entrar em sua casa e servir, levando Cristo e a força do Espírito Santo, apenas com a saudação, pois “ao ouvir a voz de tua saudação, a criança estremeceu de alegria em meu ventre”, dirá Isabel, que ficou cheia do mesmo Espírito de Amor.
Em todas as manifestações da religiosidade popular e outras de cunho neopentecostal e criada pelos aparatos midiáticos, o problema talvez não esteja na fé sincera do povo – essa é bonita e legítima –, mas na forma como organizamos esses rituais e eventos e os transmitimos também pelas tecnologias digitais e outros recursos telemáticos e tecnológicos. Às vezes, parece que basta andar com a imagem de Nossa Senhora, gerando comoção, para resolver problemas humanos e sociais que têm causas e raízes muito mais profundas.
Por isso, nunca é demais pedir a Deus e à Nossa Senhora, discernimento, sabedoria e firmeza na Fé, para realizarmos ou fazermos tudo o que se tem feito ou que se deva ser feito sem, no entanto, perder a clareza e a lucidez do que por que e do pra que fazemos todas as coisas, não caindo na tentação do pragmatismo, do fazer porque tem de fazer, ou pelo modismo de que todo mundo faz, vamos fazer também.
Na área da saúde, por exemplo, além da visita com a imagem, nossa súplica e luta devem ser por mais postos de saúde, mais unidades de pronto atendimento, hospital municipal bem equipado e com mais leitos; a mesma necessidade e outras possui também o hospital regional do baixo Amazonas, que nem sempre tem leito disponível para quem mais precisa, sendo uma luta para conseguir salvar vidas, fortalecendo também nossa Pastoral da Visitação e da Saúde, tendo em vista a efetiva evangelização e transformação da realidade.
Nos presídios, fortalecer nossa Pastoral Carcerária e outras pastorais socioambientais, nas lutas sociais por vida digna para indígenas, quilombolas, crianças, mulheres, populações marginalizadas, ou povos das águas, das florestas e das ruas. Em tudo, à exemplo de Nossa Senhora, de São José e do Menino Jesus, lutar e zela pela dignidade e integridade das famílias, à exemplo da Sagrada Família de Nazaré.
MARIA QUE VISITA E PERMANECE
Maria passa por nossas ruas e corações, mas também fica. Fica como inspiração de uma fé viva, que não se contenta apenas com o consolo momentâneo, mas se torna força transformadora. Ela nos ensina a guardar e meditar tudo no coração (Lc 2,19) e a fazer “tudo o que Ele nos disser” (Jo 2,5). Portanto, “Nazaré chegou por aqui e resolveu ficar”, assumindo nossa humanidade por inteiro, nossa história como comunidade eclesial, como Igreja de Santarém, com seus objetivos e diretrizes na obra evangelizadora a ela confiada como missão de ser, cada vez mais, uma Igreja em saída, sinodal, samaritana e servidora.
Talvez seja hora de refletir juntos:
- Nossas práticas religiosas, incluindo adorações, cercos de Jericó, novenas, peregrinações, procissões, e outras, nos levam a amar mais e agir mais para uma conversão pessoal e social, com gestos concretos de engajamento e luta para aliviar e curar as dores do povo?
- O que Maria faria diante das injustiças e dores do nosso povo, sobretudo diante da destruição do meio ambiente e do risco da destruição do planeta nossa Casa Comum? Ela como cuidadora e servidora dedicada, nos inspira o desejo de nos engajarmos em pastorais e movimentos que lutam em defesa da vida em todas as suas dimensões?
- Estamos ajudando nossa comunidade a viver uma fé viva, para além dos momentos de ajuntamento de centenas e milhares de pessoas em eventos, inserida em nossas comunidades eclesiais de base, prioridade de nossa Igreja, ou apenas a repetir ritos na busca de saciar necessidades apenas pessoais e muitas vezes somente autorreferenciadas?
Que Nossa Senhora da Imaculada Conceição e Nossa Senhora de Nazaré continuem passando… e permanecendo entre nós. Que, por sua intercessão, sejamos capazes de transformar a comoção, o ajuntamento, a aglomeração, a peregrinação, em compromisso e o ritual em serviço.
Que ela nos ajude a amar a Igreja cada vez mais, no que ela nos ensina em seu Magistério, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II e nas conferências episcopais latino-americanas que nos inspiram a lutas pelos abandonados, desfavorecidos, espoliados, marginalizados, sofredores e violentados pelo pecado pessoal e social.
Texto: Everaldo de Souza Cordeiro – Mestre em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM/UFPA e Doutorando em Educação pelo PPGE/UFOPA – Pastoral Socioambiental Arquidiocese de Santarém
Foto: Jornalista Rosa Rodrigues.