Os grandes acontecimentos históricos mostram seus efeitos a longo prazo. Isso certamente é o que constataremos com o legado de Bento XVI, papa-emérito que nos deixou neste dia 31 de dezembro de 2022, após um pontificado de cerca de oito anos e outros dez anos como papa-emérito.
Em fevereiro de 2013, quando anunciou sua renúncia, as opiniões se dividiram entre os que criticaram a criação de um precedente negativo, delicado e perigoso; e os que elogiaram sua coragem, mostrando que a Igreja é viva, dinâmica, sempre atual. A renúncia de Bento XVI mostrou exatamente sua consciência de que a Igreja é muito maior do que o Papa, que a Igreja é um conjunto, Corpo, como define o Concílio Vaticano II. Bento XVI mostrou que o pontificado é realmente serviço, ministério, e não poder. Serviço a Deus, à Igreja e aos seres humanos, católicos ou não. O Papa é o símbolo da unidade desta Igreja sinodal, universal, diversificada.
Quando Bento XVI sentiu que não conseguiria exercer com perfeição esse serviço, preferiu deixar que outra pessoa o sucedesse. O ministério não poderia ser exercido com limitações ou fragilidades, e por isso a sensibilidade do Papa Ratzinger neste aspeto foi louvável e serve de modelo para muitos ministérios/serviços exercidos na Igreja. Foi um ato de extrema humildade, liberdade e ousadia, que expressou de fato o verdadeiro sentido da fé cristã: deixar-se guiar plenamente pelo Espírito Santo e não por interesses terrenos.
Talvez hoje, após a sua páscoa, temos mais clara a grandiosidade da sua ação e do seu pontificado como um todo. Não há dúvidas de que o legado que deixou à Igreja é muito vasto. Não tardará em ser considerado “doutor da Igreja”, ao lado de grandes papas do passado. Há inclusive quem diga que daqui a cem anos os nossos breviários estarão repletos de leituras de Bento XVI. De imediato, temos a certeza que seus escritos, variados e sempre muito profundos, são referência no mundo eclesial e acadêmico. Não por acaso recebeu dez títulos “Doutor Honoris Causa”.
Se tivesse que definir o pontificado de Bento XVI em poucas palavras, diria exatamente que foi uma grande escola da fé. Sua renúncia veio em meio ao Ano da Fé, praticamente a continuidade do Ano Paulino e do Ano Sacerdotal, por ele tão desejados e bem celebrados. Essa foi a marca que Bento XVI quis deixar à história: refletir sobre a fé, saber em que cremos. Dirigindo-se aos jovens, no prefácio do YOUCAT, por exemplo, disse: “Tendes de conhecer a vossa fé como um especialista em tecnologia domina o sistema funcional de um computador. Tendes de a compreender como um bom músico entende uma partitura. Tendes de estar enraizados na fé ainda mais profundamente que a geração dos vossos pais, para enfrentar os desafios e as tentações deste tempo com força e determinação”.
Consciente das dificuldades em viver a fé num tempo de secularismo e perseguição aos valores cristãos, Bento XVI procurou sempre ajudar os católicos a aprofundarem a fé, como verdadeiro pedagogo e mestre. Suas catequeses das quartas-feiras traçaram um percurso fundamental para o aprofundamento da fé: iniciando pela origem do cristianismo, as bases da nossa fé (Apóstolos e São Paulo); percorreram os padres e doutores da Igreja, grandes santos e santas, modelos de fé; para enfim concluírem com a oração e a vivência da fé hoje. Foi uma verdadeira catequese – palavra de origem grega que significa “instruir a viva voz” –, conduzindo os cristãos a um aprofundamento da fé e da vida cristã.
Mas isso é apenas a ponta do grande iceberg do legado de Bento XVI. Seus discursos, homilias, documentos e mensagens para diferentes situações e datas do ano estão repletas de ensinamentos, são tesouro inesgotável que será descoberto e valorizado gradualmente e que só teremos a noção exata da sua preciosidade daqui a alguns anos. Além de ser um pontífice-doutor, mestre, Bento XVI foi também um pontífice-humanista, pastor, como podemos ver muito bem retratado na sua biografia Bento XVI: A Vida, escrita por Peter Seewald e publicada pela Paulus em 2021. No conjunto da obra de Bento XVI (e mesmo antes, enquanto o professor Ratzinger) vemos aflorar um profundo humanismo cristão. O ser humano vem sempre em primeiro lugar, em oposição às leis do mercado, ao consumismo, à ganância de poder, de riqueza, de prazer. O ser humano, como filho de Deus que caminha no mundo em busca do bem e da verdade, é o essencial.
Suas viagens apostólicas (24 fora da Itália) mostraram a luta pelos valores e pela dignidade humana. Veio ao Brasil em 2007, foi ao Oriente Médio e a países conflituosos da África, por exemplo. Em cada país abordou questões fundamentais relativas aos valores humanos e sociais. Não teve medo de falar sobre os verdadeiros problemas da humanidade e por isso muitas vezes sofreu críticas.
Suas exortações apostólicas e encíclicas também expressam muito bem essa dimensão. Numa análise rápida de seu magistério, poderíamos dizer que Bento XVI começou por ser o “Papa da caridade”, tornando-se depois o “Papa das virtudes” teologais. Logo na sua primeira encíclica, publicada em 25 de dezembro de 2005, quis mostrar o rosto do amor verdadeiro: Deus caritas est (Deus é amor). Nesse documento, Bento XVI abordou o amor humano nas suas três vertentes, segundo a tradição grega: eros, philia e ágape. Passados menos de dois anos, publicou sua segunda encíclica, sobre outra virtude teologal: a esperança. O documento Spe Salvi (Salvos na esperança) encoraja os cristãos a levarem uma vida cheia de esperança em oposição a uma vida vazia e sem sentido, distante do Deus verdadeiro.
Anteriormente, naquele mesmo ano 2007, havia publicado uma exortação apostólica que mostrava a Eucaristia como verdadeiro Sacramento da caridade (Sacramentum Caritatis). Outros dois anos e uma nova encíclica sobre as virtudes teologais: Caritas in veritate (A caridade na verdade) apontou prioridades e valores a respeitar, especialmente em relação aos problemas financeiros e às questões relacionadas à doutrina social da Igreja, seguindo uma lógica bastante simples, mas muito profunda: “a economia precisa da ética, a ética da caridade, a caridade da verdade”. Propõe um ciclo virtuoso belíssimo. Em 2010, após o sínodo sobre a Palavra de Deus, ainda publicou a exortação Verbum Domini (A Palavra do Senhor).
Deixou inacabada a encíclica sobre a fé, terceira das virtudes teologais. Aguardada com grande ansiedade após Ano da Fé, foi concluída e publicada já sob o pontificado do seu sucessor, o Papa Francisco, com o título Lumen fidei (A luz da fé). Logo no início do documento Francisco recorda e agradece ao seu antecessor: “Estas considerações sobre a fé pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto alguma nova contribuição. De fato, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e amanhã, sempre está chamado a «confirmar os irmãos» no tesouro incomensurável da fé que Deus dá a cada homem como luz para o seu caminho. Teríamos assim o “papa das virtudes” com um legado completo. Mas mesmo sem a publicação da nova encíclica, o seu ensinamento sobre a fé é bastante conhecido. O Ano da Fé é fruto e prova disso. Finalizar o seu pontificado em meio a esta celebração do Ano da Fé é de fato a moldura perfeita para o seu pontificado da fé, do amor e da esperança.” (Lumen fidei, n. 7)
Ao nos despedirmos do Papa Bento XVI, fica o nosso agradecimento pelo seu precioso serviço à Igreja e a certeza de que ainda teremos muito por aprofundar e meditar sobre o vasto legado por ele deixado.