A Urbe líquida: espaços culturais (1)

 
A Arquidiocese de Belém se prepara para realizar sua 9ª. Assembleia. Será um tempo oportuno para repensar a evangelizar no contexto da Urbe, afinal a Igreja surgiu no mundo urbano e se propagou a partir da complexa realidade das cidades. Porém, aos poucos, ela optou pelo rural e criou sistemas rurais de evangelização onde a praça, a o templo e a delegacia eram os centros de referência. No entanto, ao acordar, a Igreja se percebeu num contexto urbano, onde os centros de referência mudaram e ela perdeu a praça, o templo e a delegacia, ficou apenas com a nostalgia do passado.
 
Ela Esqueceu que o próprio Jesus, ao contrário de João Batista, o homem do deserto, era dos centros urbanos e foi um itinerante da cidade. Na cidade, afirma muito bem Aparecida, existem laboratórios culturais (DAp, 509). Contudo, a Urbe, será sempre um produto da criação humana. Ela inclui e exclui simultaneamente proporcionando impactos sobre o sujeito urbano. Nela interagem valores, culturas, tradições, interpretações variadas do cotidiano, projetos e condutas. Por isto, a cultura urbana produz significados que, atualmente, não se cristalizam em dogmas culturais, são líquidos, angustiosamente efêmeros. Neste sentido, a Urbe líquida produz sensações em seus habitantes que se expressam em linguagens às vezes incompreensíveis, é um caos repleto de mitos, símbolos e ritos que ditam o ser em sociedade.
 
A sociedade urbana contemporânea, veio de um mundo rural fechado, unanime e de valores intocáveis. Com a modernidade rompeu-se a tradição, a cristandade, os valores intocáveis, cresceu a mobilidade social, o trabalho produtivo e a religião católica perdeu sua hegemonia. A Urbe é cada vez mais plural, Urbes, portanto, mais vertical e isolada pelas seguranças próprias dos bairros segregados com políticas próprias, lideranças reconhecidas e fronteiras determinadas. Não é mais a sociedade dos vizinhos, mas do medo, que aprisiona seus habitantes em guetos domésticos. A evangelização herdou as mesmas carências.
 
Trata-se de um urbanismo líquido porque, ao mesmo tempo em que surge tão evidente é invisível e até soturna. Neste mundo urbano escondem-se seres humanos com culturas, religiões, classes, sociedades com binômios bem definidos, como afirma Aparecida: “tradição-modernidade; globalidade- particularidade; inclusão-exclusão; personalização-despersonalização; linguagem secular-linguagem religiosa; homogeneidade-pluralidade; cultura urbana-pluriculturalidade” (DAp, 512). Por conseguinte, o mero populismo religioso moderno que busca atrair fieis resolve o problema imediato, mas não congrega pessoas nem evangeliza, porque a Urbe segue um padrão próprio que é da invisibilidade marcado pelas visões religiosas presentes nas culturas(DAp, 238), em outras palavras, as ofertas são abundantes e o poço precisa ser transbordante porque o eco-humano urbano é um itinerário que vagueia na busca de saciar a própria sede. Estamos diante de uma nova antropologia religiosa.
 
Não há mais a territorialidade visível e demarcada como espaço de vivência. O que há é a formação de laços em territórios religiosos interdependentes que formam cidades culturais invisíveis dentro da Urbe. A religião pode criar laços, mas precisa ser criativa, ousada e menos territorial. É a religião dos migrantes que expressam a fé segundo a ida ao poço de seus interesses, devoções e identificação. São os crentes sem Igreja, distantes, indiferentes e ressentidos com a Igreja institucional hierárquica e clerical (DAp, 310.173. A Urbe atrai e encanta mais pelos corpos que se deslocam do que pelos corpos estáticos e definidos verticalmente. É a sociedade das sensações onde Deus não existe, pelo menos o Deus que a religiosidade trancafiou dentro dos templos. Daí a grande massa batizada, mas não praticante que muda de experiência religiosa segundo a qualidade da água do poço que lhe é oferecida.
 
A Igreja de Belém está imersa neste emaranhado urbano e acredita que Deus habita nesta cidade. Ela precisa estar consciente de que a Urbe deixou de ser homogênea e maleável, tornou-se um corpo com variadas categorias sociais, econômicas, políticas, culturais, com classes sempre mais visíveis: descartáveis, pobres, classe média e uma elite insensível, vertical e preconceituosa, que rejeita a possibilidade de descer da montanha de suas glórias e quer uma igreja à serviço de suas mesas. Contudo, nesta grande Urbe, há corpos sociais que ainda se alimentam dos grãos que caem das mesas das pastorais e movimentos, comunidades e planos pastorais que se descabelam para acertar na evangelização, mas não admitem que os cachorrinhos comam das sobras. Há uma tendência a segurar até os grãos simbolizados no neo-pelagianismo, no agnosticismo e no jansenismo moral-religioso que não liberta, mas escraviza. Papa Francisco no discurso no congresso da Igreja Italiana em Florença em 2015, se referia exatamente a estas vertentes do complexo corpo eclesial que, muitas vezes, não permite que as sementes do verbo sejam fecundadas.
 
O neo-pelagianismo moderno se manifesta na Urbe com o rigor das leis, das doutrinas e dogmatismos, das estruturas e dos projetos perfeitos que se confrontam com as linguagens das culturas urbanas sempre mais dialogantes. Os agnósticos se fecham no subjetivismo e na impossibilidade de encontrar no poço a fonte de água viva que sacia a sede de Deus. Impedem que o processo de inculturação da fé se torne uma realidade assimilada pelas culturas urbanas. A pessoa fica refém de sua própria razão ou sentimentos. O jansenismo moral-religioso, cria uma casca religiosa que protege de toda e qualquer dúvida e não deixa que a experiência de fé passe pela carne humana, mas a rejeita como algo pecaminoso e nojento. É a religião da devoção e não do compromisso com o sagrado. A Igreja, então, encontra-se diante de um dilema cultural que ainda não conseguiu entender e dar a água que a Urbe tanto busca no “meio dia” de suas andanças (DAp, 44). Ainda não chegamos a compreender que neste emaranhado de culturas está misturado as sensações rurais, urbanas e tecnológicas de ponta. É um grande caleidoscópio que nos revela variadas realidades que às vezes nos cegam e não permitem que a evangelização seja transfigurada e uma boa noticia libertadora das grandes sombras que “marcam o cotidiano das grandes cidades, como exemplo a violência, pobreza, individualismo e exclusão” (DAp, 514).
 
Continua na próxima edição
 
 
 

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