A purificação de Maria

Festa de Nossa Senhora das Candeias – Foto: Prefeitura de Juazeiro do Norte (CE)
Festa de Nossa Senhora das Candeias – Foto: Prefeitura de Juazeiro do Norte (CE)

Monsenhor Ronaldo Menezes – Vice-Presidente da Fundação Nazaré de Comunicação

A festa da Apresentação do Senhor, ainda que seja uma festa de Cristo Jesus, conserva seu caráter mariano, como era antigamente. Impôs-se em nossas comunidades o nome ligado à Virgem Maria como festa de Nossa Senhora das Candeias ou Nossa Senhora da Luz, ou simplesmente Candelária, que celebramos no dia 2 de fevereiro. A natureza desta festa é, seguramente, bíblica. Antes do concílio Vaticano II, chamava-se festa da Purificação de Maria. Há notícias desta celebração desde o século IV, no Itinerário de Egéria. Agora, nós temos esta festa vinculada ao ciclo do Natal com a manifestação do Senhor. O ritual para esse dia prescreve que as velas para a procissão, que antecede à Santa Missa, sejam abençoadas em lugar adequado fora da igreja. É uma das formas. 

São Lucas dá enorme realce à cena da apresentação de Jesus no templo de Jerusalém, sublinhando sua importância e significados. O quadro descrito pelo evangelista pode ser dividido em três partes: a purificação da Virgem Maria e a apresentação de Jesus no templo; o testemunho de Simeão e a terceira é a intervenção da profetisa Ana. O texto para você acompanhar é Lucas 2,2-38. 

Pode acontecer que nós, católicos, vamos à missa nesse dia e nem sequer damos a importância devida ao que celebramos. É um risco que corremos sempre. Veja por que é importante dar realce a esse dia: desta cena, decorre uma doutrina que temos a obrigação de conhecer acerca da participação da Mãe do Senhor na obra de salvação; de modo muito claro, a Virgem Maria participa da obra redentora do seu filho Jesus, o Verbo encarnado. Maria, porém, não é nem pode ser chamada de corredentora. Temos apenas um único redentor, Cristo Jesus. 

O conteúdo bíblico, embora seja simples para quem tem contato contínuo com a Palavra de Deus, não é de todo fácil de compreender. Assim, vejamos. O livro do Êxodo prescrevia que todo filho primogênito era consagrado a Deus (13,2.11-16; 35,20), e o livro dos Números ordenava que fosse resgatado por cinco ciclos de prata (18,15-16). A mãe da criança devia ser purificada aos 40 dias após o parto, se desse à luz um menino, e no 80º se fosse menina. A oferenda do resgate podia ser um par de pombas, uma das aves como holocausto e a outra, como sacrifício (Lv 12,1-8). Eram as normas e todo fiel tinha conhecimento. Não era obrigatório levar o menino ao templo, mas a apresentação, geralmente, era praticada pelas pessoas piedosas (Nm 18,15). O fato de Maria e José levarem Jesus ao templo, mesmo sem essa obrigatoriedade, demonstra que eles eram uma família piedosa e observantes das leis religiosas. É interessante notar no texto de São Lucas que ele não menciona os cinco ciclos para o resgate da criança. Não por acaso, ele deixa de mencionar este fato. Jesus não precisava nem foi resgatado; ele será o consagrado a Deus, a vítima oferecida de uma vez para sempre. Maria, ao apresentá-lo no templo já possui essa compreensão de que ele será a vítima perfeita para a salvação do mundo e, por isso, não poderá ser resgatado por nenhum preço. Ademais, como imaginar que Deus possa ser resgatado? Então, Jesus é levado ao templo. O templo é o centro do culto antigo e o núcleo nevrálgico da cidade de Jerusalém, para onde Jesus caminhará um dia e será duplamente entregue: aos judeus, pela traição de Judas; aos romanos, pelo sinédrio, o órgão judicial máximo dos judeus. De toda essa trama, Maria participa, isto é, ela participa da missão e do destino do seu Filho. 

A segunda cena que se desenvolve no templo é a presença de Simeão, um “homem justo e piedoso”, que esperava a consolação de Israel. São Lucas aplica a este homem quatro notas explicativas: é justo e piedoso, aguarda a consolação de Israel e o Espírito Santo estava sobre ele. É um profeta. Sobre ser justo e piedoso não é necessário dizer muito, porque parece ser evidente o que esses adjetivos significam. Mas o fato de ele “esperar a consolação de Israel” é bastante significativo. Simeão é um homem de fé, confia nas promessas de Deus a seu povo sobre o Messias Salvador; sabe que ele virá. Deus comunicara pelos profetas a vinda do Messias. Agora, convoca um profeta ao templo para anunciar o cumprimento da promessa e a chegada do Salvador. Por isso, impulsionado pelo Espírito de Deus, Simeão está no templo. Ao ver o Menino nos braços de Maria, reconhece-o como o Senhor prometido e aguardado por todas as gerações. Como profeta, havia recebido uma revelação divina de que não haveria de morrer antes que visse o Messias, ou “o Cristo do Senhor”, uma referência ao ungido do Senhor, consagrado para a missão de salvar, o Redentor. Toma o menino nos seus próprios e cansados braços, e bendiz a Deus, canta em louvor ao Altíssimo. O seu cântico é belo, repleto de alusões ao profeta Isaías, que ele devia conhecer profundamente. 

Maria e José estavam admirados com as palavras de Simeão. O profeta, então, olha para Maria e lhe diz, diretamente: “Eis que este menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição – e a ti, uma espada traspassará tua alma! – para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações”. O que terá pensado Simeão? O que Deus lhe revelou naquele momento? Surdez à mensagem de Jesus? Abandono da fé em muitos lugares, como agora? Se isto dói no Filho amado do Pai, dói, igualmente, na Mãe deste Filho amado. Esta é sua missão dolorosa, compartilhar as dores do seu filho. Ou seja, não é somente a cena da Cruz que irá ferir a Virgem Mãe, mas todas as dores de Jesus. As crises vividas pelo Corpo de Cristo, a Igreja, as divisões, as contendas, as defecções, tudo isto pesará no coração da Mãe de Jesus, desde aqueles dias até hoje. Esta é a espada que ferirá o coração de Maria, é a espada que ainda não lhe foi retirada, e continua a sangrar. Penso que deveríamos refletir mais sobre este aspecto da espada encravada no coração da Mãe de Jesus toda vez que estamos nos desvelando nos atos devocionais marianos, para irmos além das devoções até chegar a mais absoluta convicção de que temos obrigações reais com o Filho que ela gerou e no-lo deu como vítima perfeita. Nossos atos de piedade mariana não podem estar contaminados por elementos não religiosos, porque isto continua a ferir o coração da Mãe do Senhor. 

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