
Por Dom Julio Endi Akamine – Arcebispo Metropolitano de Belém
A declaração conciliar Nostra Aetate foi promulgada no dia 28 de outubro de 1965.
Ela teve uma longa e também a mais dolorosa pré-história, que começou no Novo Testamento até os horrores de Auschwitz. Depois do choque provocado pelos horrores de seis milhões de hebreus, hebreus e cristãos levantaram a voz e fizeram com que as Igrejas se comprometessem na luta contra o antissemitismo.
Foi o Papa São Paulo VI, com sua visão sobre a humanidade como família de irmão e irmãs, de filhos de Deus, que fez com que o documento se tornasse o núcleo central de uma declaração conciliar: as relações da Igreja católica com as religiões não cristãs. Com efeito, em NA 5 podemos ler:
Não podemos invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens, seus irmãos, que a Escritura afirma: “quem não ama, não conhece a Deus” (1Jo 4,8). Carece, portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade humana e aos direitos que dela derivam.
A Declaração conciliar é um marco na história das relações entre cristãos e judeus. Pela primeira vez um concílio falou de maneira mais detalhada e positiva do povo hebraico e do vínculo que há entre a Igreja e o judaísmo.
A Declaração Nostra Aetate afirma que há relações espirituais que ligam a Igreja com a religião judaica. A partir dessas relações espirituais devem ser condenadas todas as formas de antissemitismo e de discriminação.
Que relações espirituais há entre a Igreja e os descendentes de Abraão?
A Igreja reconhece que os primórdios da sua fé e eleição já se encontram nos patriarcas, em Moisés e nos profetas. Ela professa que todos os cristãos estão incluídos na vocação de Abraão e que a salvação da Igreja foi, misticamente, prefigurada no êxodo do povo escolhido. A Igreja não pode, por isso, esquecer que foi por meio desse povo que ela recebeu a revelação bíblica.
Também tem sempre diante dos olhos as palavras do Apóstolo Paulo a respeito dos seus compatriotas: «deles é a adoção filial e a glória, a aliança e a legislação, o culto e as promessas; deles os patriarcas, e deles nasceu, segundo a carne, Cristo» (Rm 9,4-5). Recorda ainda a Igreja que os Apóstolos, fundamentos e colunas da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como muitos daqueles primeiros discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho de Cristo.
Segundo o Apóstolo, os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser muito amados por Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento (NA 4).
Conhecer o patrimônio espiritual comum entre cristãos e judeus, nos leva a reconhecer que o distanciamento é negativo para os próprios cristãos. O distanciamento provocou uma ruptura dos cristãos com suas raízes uma vez nós somos, espiritualmente, semitas (Pio XI). Assim, a religião judaica é, de alguma forma, intrínseca ao cristianismo.
Outras afirmações importantes de Nostra Aetate: não se pode imputar, indistintamente, a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na paixão de Cristo se perpetrou. E, embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso, os judeus devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da Sagrada Escritura. Procurem todos, por isso, evitar que, tanto na catequese como na pregação da palavra de Deus, se ensine seja o que for que não esteja conforme com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo.
Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer homens, lembrada do seu comum patrimônio com os judeus, e levada não por razões políticas, mas pela religiosa caridade evangélica deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus.

Fiz questão de repetir e reafirmar estas convicções porque as afirmações da Nostra Aetatesão, completamente, ignoradas por muitas pessoas. Infelizmente, estamos vendo também um aumento de pessoas que não só nunca ouviram falar da Declaração conciliar, mas que desejam reavivar antigas suspeitas e ódios. Mais do que nunca é preciso reafirmar, repetir, divulgar e, sobretudo, pôr em prática e tornar vida o que a Nostra Aetate ensinou há 60 anos.
Nesse sentido, concluo estas breves palavras, citando o que São João Paulo II afirmou na sua visita a Sinagoga de Roma: “temos com a religião judaica relações que não temos com nenhuma outra religião. Vós sois nossos irmãos prediletos e, em certo modo, poderíamos dizer, sois nossos irmãos mais velhos”.



