Miscelânea: Maldição (IV)

 
 
 

Para os povos bíblicos, a maldição não se limitava ao que já vimos em Miscelânea: a uma cláusula penal contra os transgressores de algum preceito, pronunciada, quer ritualmente (Cf. DT 27-28), quer num rito específico, já estudado aqui, o ordálio (Cf Nm 5,18-27). Era muito mais. Pois é esse muito mais que, data vênia, passamos a ver, a partir de agora. 

Costumava-se, também, empregá-la como ameaça para levar alguém, ou ao arrependimento e, graças a ele, a devolver o dinheiro que não era seu (Jz 17, 1-4), ou a denunciar o culpado (Pr 29, 24). A seguir, o caso relatado no livro dos juízes.

Assim que ouviu a mãe amaldiçoar, em voz alta, tanto a quem lhe furtara a considerável quantia de mil e cem siclos – em Hebraico seqel, moeda hebraica padrão no AT, no tempo do domínio persa, para ser mais exato, peso e não moeda, onze quilos de prata pura, hoje comparável ao dólar – maldição extensiva a quem sabia a identidade do culpado, certo homem da serra de Efraim, chamado Micas, amedrontado, confessou a autoria do delito, condicionando a devolução do dinheiro ao desfazimento do poder da maldição pelo proferimento da bênção oposta. Antes de recebê-lo de volta, a mãe diz: 

– Consagro este meu dinheiro ao Senhor, em favor do meu filho, para fazer uma estatua chapeada. 
Promessa feita, promessa cumprida: separou duzentos siclos e os levou a um ourives. Este fez uma estatua chapeada, provavelmente folheada a prata, que foi colocada na casa de Micas. 

Quanto à denúncia de um culpado, sentencia o Livro dos Provérbios (20,24): “O cúmplice do ladrão odeia a si mesmo: ouve a maldição (entenda-se: a pronunciada contra um criminoso desconhecido ou contra as testemunhas que permaneceram ocultas), mas não o denuncia.” 
 
No tribunal, convocada a testemunha, o juiz pronunciava sobre ela uma maldição condicional, para o caso de mentira ou ocultação do que sabia. 
 
A esse respeito, o Levítico declara (5,1), em tradução livre, de minha autoria: “quem, após ouvir nele a fórmula de maldição, nada declarou do que viu ou soube, leva consigo o peso dessa sua falta.” 
Havia que recorresse à maldição para reforçar o juramento à maneira de imprecação: “que me aconteça isso, se …” 
Dois exemplos:
Em 1 Sm 14, 24, lê-se que, como seus homens estivessem exaustos do combate com os filis teus, Saul profere sobre eles esta imprecação: “maldito seja o homem que comer alguma coisa antes de terminar o dia, antes que eu me tenha vingado de meus inimigos.” Claro está que, devido a isso, nenhum deles provou qualquer alimento, pois quem é doido de brincar com maldição, quem, quem? Em Jó 31, 7-40, nada menos que nove orações condicionais, pronunciadas pelo próprio, todas iniciando-se com a expressão “se eu”…, e, no final de cada, uma conseqüência maléfica: “se afastei meus passos do caminho, seguindo os caprichos dos olhos, se alguma coisa se apegou em minhas mãos, que outro coma o que eu semear e arranquem meus rebentos.”

As outras oito, por carência de espaço, deixo para o leitor buscar em sua Bíblia. Bom proveito. Shalon!
 
 

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