O Papa e o cinema, um diálogo feito de encontros e memórias

Durante o Jubileu dos Artistas, em 17 de fevereiro, Francisco será o primeiro Pontífice a cruzar o limiar dos estúdios da Cinecittà. Seu vínculo especial com a sétima arte é feito de memórias pessoais, intercâmbio com artistas, citações cinematográficas e experiências no set de filmagem.

O Papa Francisco durante a exibição de um filme no Vaticano (VATICAN MEDIA Divisione Foto)

Para Francisco, o cinema é um território de memórias, uma oficina de criatividade. Para entender esse interesse de Jorge Mario Bergoglio pela sétima arte, temos que imaginá-lo quando criança, no período pós-guerra, quando ele assistia com seus pais os filmes neorrealistas italianos, que marcavam sua imaginação nas distantes noites argentinas. A esses e outros filmes, o Papa se referiu várias vezes em seus discursos: “Quando éramos crianças, nossos pais nos levavam para ver esses filmes, e eles formaram nossos corações”, disse Francisco em 7 de dezembro de 2019, quando se encontrou com representantes da Associação Católica de Operadores de Cinema.

O cinema, se sabe, é um grande instrumento de agregação. Especialmente no período pós-guerra, ele contribuiu excepcionalmente para a reconstrução do tecido social com muitos momentos agregadores.

A visão de Francisco sobre o cinema

Naquela ocasião, o Bispo de Roma resumiu a força da tela grande em três palavras: comunhão, criatividade e visão. “O cinema, como sabemos”, disse ele, explicando o primeiro termo, “é um grande instrumento de agregação. Especialmente no pós-guerra, contribuiu de forma excepcional para a reconstrução do tecido social com muitos momentos de agregação. Quantas praças, quantas salas, quantos oratórios, animados por pessoas que, ao assistir ao filme, transmitiam esperanças e expectativas. E de lá partiam novamente, com um suspiro de alívio, em meio às angústias e dificuldades da vida cotidiana. Um momento educativo e formativo, para reconectar relações desgastadas pelas tragédias vividas”. Para Francisco, o cinema também é uma ferramenta para voltar a falar de “beleza”. Ele se dirigiu aos membros da Fundação de Organização de Entretenimento em 20 de fevereiro de 2023: “Gosto do trabalho que vocês fazem, o trabalho do cinema, o trabalho da arte, o trabalho da beleza como grande expressão de Deus”. Uma beleza “que é harmonia, obra do Espírito Santo”.

Amor pelo neorrealismo

Bergoglio, em seu ensinamento, frequentemente se refere a cenas ou histórias vistas na tela grande, como na entrevista concedida em 19 de agosto de 2013 ao Padre AntonioSpadaro: “’La Strada de Fellini’ é talvez o filme que mais amei. […] Acho que vi todos os filmes com Anna Magnani e Aldo Fabrizi quando tinha entre 10 e 12 anos. Outro filme que eu realmente amei foi ‘Roma, Cidade Aberta’”. Durante a recente cúpula no Vaticano sobre os direitos das crianças ele lembrou, como fez em outras ocasiões, ‘As crianças nos observam’, de Vittorio De Sica. Encontramos vestígios do amor de Francisco pelo neorrealismo na entrevista conduzida por monsenhor Dario EdoardoViganò em seu volume de 2021, ‘Losguardo: porta delcuore’ (O olhar: porta do coração). O neorrealismo entre memória e atualidade (EffatàEditrice): “Como seria bonito – disse Bergoglio – redescobrir através do cinema a importância da educação ao olhar puro. Assim como o neorrealismo fez.” E ele também falou da sétima arte como uma “catequese do olhar”, como “uma pedagogia para os olhos que muda o nosso olhar míope, aproximando-o do olhar do próprio Deus”. Este interesse pela realidade está em harmonia com o que o Papa também afirmou na Carta sobre o papel da literatura na educação: “Eu, por exemplo, amo os artistas trágicos, porque todos nós poderíamos sentir suas obras como nossas, como uma expressão de nossos próprios dramas. Chorando pelo destino dos personagens, nós, no final, choramos por nós mesmos e por nosso vazio, nossas deficiências, nossa solidão”.

Não apenas neorrealismo: “A Festa de Babette”

Uma surpresa na exortação apostólica Amorislaetitia: “As alegrias mais intensas da vida nascem quando podemos procurar a felicidade dos outros, num antícipo do Céu. Devemos lembrar da cena feliz do filme ‘A Festa de Babette’, onde a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e um elogio: “Como você encantará os anjos!”. O filme de Gabriel Axel, baseado num conto de Karen Blixen, conta a história da generosidade de Babette, que, uma católica acolhida por Martina e Philippa, filhas de um pastor protestante, anos depois decide usar o dinheiro que ganhou numa vitória para homenagear o pai das duas mulheres com um grande jantar. Ele gasta tudo, mas se alegra por ter feito os outros felizes.

Rapsódia de Akira Kurosawa em agosto

Durante sua visita pastoral à paróquia romana de Santa Maria a Setteville, em 15 de janeiro de 2017, Francisco relembrou uma experiência pessoal: “Quando estava em Buenos Aires, fiz uma catequese com um filme, e depois fiz as pessoas refletirem sobre esse filme, e no final veio a catequese, na semana seguinte, então eles tiveram uma semana para pensar sobre o filme. […] Por exemplo, para explicar o diálogo entre avós e crianças, que é tão importante, há um filme de 20 anos atrás, que os recomendo – vão encontrá-lo – ‘Rapsódia em agosto’. É japonês, de Kurosawa.”

Andrei Rublëv de Tarkovsky e a capacidade de se surpreender

Retornando ao encontro com a Fundação de Organização de Entretenimento, Francisco revelou outro filme favorito do dia, relatando uma imagem maravilhosa dele. “Penso naquela obra-prima que é Andrei Rublëv, de Tarkovsky: o artista permanece mudo devido ao trauma da guerra. Isso faz pensar sobre o que está acontecendo no mundo hoje. Rublëv não pinta mais, nem fala mais. Ele vagueia perdido em busca de significado, até testemunhar a fusão de um sino. E ao primeiro toque daquele grande sino seu coração se abre novamente, sua língua se solta, ele começa a falar novamente e começará a pintar novamente. E a tela se enche com as cores dos seus ícones. O som do sino, que sai da terra e do bronze, como que por milagre, enche de admiração a alma do artista e, em certo sentido, ele ouve nele a voz de Deus, que lhe sussurra: “Abre-te”. Como disse Jesus no Evangelho: “Efatá” (Mc 7,34)”.

Francisco “protagonista, não ator”

Com o diretor alemão Wim Wenders, o intercâmbio foi além de uma simples conversa e se transformou no documentário de 2018 filmado na Cidade do Vaticano: “Papa Francisco. Um homem de palavra, uma experiência” contada por monsenhor Dario EdoardoViganò num livro. Aqui o Papa se tornou o “protagonista, não o ator” da história de uma igreja sonhada, “pobre para os pobres”.

O diretor do Sacro GRA, o Leão de Ouro Gianfranco Rosi, também criou um filme, “In viaggio”, baseado principalmente em vídeos de arquivo para contar a história do compromisso do Papa em suas visitas apostólicas, 37 em 53 países, nos primeiros nove anos. Uma peregrinação que foi também uma pregação de valores e uma crítica à cultura do descarte.

Atenção aos artistas

A relação do Papa com o cinema é enriquecida pelos encontros e diálogos diretos com os protagonistas. “Quando penso no Papa Francisco, devo dizer que a primeira palavra que me vem à mente é compaixão”, disse Martin Scorsese em entrevista ao diretor do L’Osservatore Romano Andrea Monda. Há uma grande admiração mútua entre os dois homens, tanto que o diretor declarou recentemente que respondeu ao apelo do Papa aos artistas decidindo preparar um filme sobre Jesus baseado num romance do japonês ShūsakuEndō.

Permanece na memória a demonstração de carinho do diretor e ator vencedor do Oscar por “A Vida é Bela”, Roberto Benigni, que no Dia Mundial da Criança de 2024 fez o Papa sorrir ao lhe apelar com sua gentileza: “O senhor é argentino, podemos dançar um tango!” E entre os muitos encontros poderíamos citar por último a audiência  com 200 artistas em junho de 2023 e a audiência com os intérpretes do humor em 2024, entre os quais Whoopi Goldberg esteve presente.

Exibições no Vaticano

Nos últimos anos, o Vaticano ocasionalmente sediou exibições de filmes de particular valor humano. Por exemplo, em 2015, a Casina Pio IV sediou uma exibição de “Invencível”, de Angelina Jolie, que o Papa também recebeu, impressionado com a história do atleta olímpico e veterano de guerra Louis Zamperini e seu percurso de fé. No ano passado, como parte dos trabalhos do Sínodo sobre a Sinodalidade, os participantes assistiram à exibição de “O Capitão”, filme de MatteoGarrone sobre histórias da emigração da África para a Europa, na presença do diretor e de MamadouKouassi, um dos migrantes que inspirou a obra. Até o Papa — muito atento ao assunto — o tinha encontrado no ano anterior, junto com o próprio Garrone e o restante do elenco.

Fonte: Vatican News / Por Eugenio Murrali

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