Introdução
Na visão popular a amizade está sempre conectada à alegria, à festa, ao prazer, ao lazer, à diversão, à aventura, ao companheirismo, ao apoio nas horas imprevistas. Contudo, na era do “amor líquido” (ZygmuntBauman, 2003), sem forma, sem critérios, sem compromissos, sem parâmetros, egoísta, consumista, hedonista e narcisista que tem como meta o puro “haurir satisfação”, é justo refletirmos sobre a importância da dimensão ética da amizade.
A experiência da amizade autêntica tem conteúdos que vão bem além dessas experiências prazerosas. A origem da amizade está vinculada ao Amor que é inseparável da verdade, da justiça, do respeito, da bondade, da honradez. Logo, por sua própria natureza, a amizade está relacionada ao bem. É por isso que na Bíblia Sagrada há uma forte sensibilidade para com a experiência da amizade e até afirma: “Amigo fiel é proteção poderosa, e quem o encontrar, terá encontrado um tesouro. Amigo fiel não tem preço, e o seu valor é incalculável. Amigo fiel é remédio que cura, e os que temem ao Senhor o encontrarão. Quem teme ao Senhor tem amigos verdadeiros, pois tal e qual ele é, assim será o seu amigo” (Eclo 7,15-17).
Certa vez, estive num presídio conversando com um grupo de mais ou menos sessenta encarcerados. Visto que nos conhecíamos, pois os visitava com frequência por causa das atividades da pastoral carcerária, numa roda de conversa falando sobre a liberdade e responsabilidade, lhes perguntei: por que você está aqui encarcerado? A participação naquela roda de conversa foi excelente. Mas uma coisa me chamou atenção: a maioria disse que estava ali por causa de um amigo, porque foi incentivado ou colaborou para a promoção de um crime. Esse fato nos estimula a aprofundar a dimensão ética da amizade.
1 – O dinamismo do eros, filia e ágape
Na cultura grega havia três concepções de amor: eros, philia e ágape. O eros é o amor que se manifesta através da atração física, sensual, sexual, passional, instintiva; o eros é voraz, devorador, impaciente, aprisionador! Mas é frágil porque está limitado à sensualidade e ao prazer. Ao centro do dinamismo do eros não está o outro, mas o “eu” sedento de desejos. No eros desaparece a dimensão ética, porque sua paixão maior é a autossatisfação.
O amor philia é o vínculo de bem-querer que entrelaça os parentes e aqueles que tem afinidade entre si. A filia é a amizade! Desse nível de Amor emerge, sem dúvida, uma profunda dimensão ética. Da Amizade brotam uma série de virtudes e atitudes tais como: o cuidado, a proteção, o respeito, a reciprocidade, a busca da segurança, o senso de honestidade, de autenticidade, a transparência, a solidariedade, a partilha, a justiça, a confiança, a fidelidade, etc. Portanto, nunca a amizade é, moralmente, neutra, ou seja, não é coerente que alguém diga que é amigo do outro, mas lhe é indiferente, negligente, injusto, incorrespondente, insensível, violento, falso, desonesto e lhe promovendo inconvenientes, etc. Diz São Paulo que o amor nada faz de inconveniente e não é interesseiro (cf. 1Cor 13,4-6).
Apesar disso, a experiência da amizade, a filia, tem como limite o vínculo afetivo e a reciprocidade, ou seja, não há a experiência da gratuidade e da transcendência no cuidado com os outros que não fazem parte do grupo dos seus parentes e amigos. Tais atitudes fazem parte da expressividade do dinamismo do ágape, que é o amor materno, desinteressado, livre, gratuito, sem fronteiras, incondicional, transbordante. É o amor divino! Apesar do ágape abraçar todas as virtudes da filia (amizade), não se deixa limitar pela condição da reciprocidade.
2 – A amizade é benevolente e benfazeja
Quem ama quer sempre o bem e por isso, faz o bem ao outro e jamais deliberadamente o prejudica. O amor, por sua própria natureza, só faz o bem. Por isso, a experiência da amizadeé sempre edificante e humanizante. Isso significa que a autêntica amizade é uma relação que promove os sujeitos envolvidos tornando-os corresponsáveis uns pelos outros.
Tanto o amor de amizade (filia) quanto o amor ágape (a caridade) tem uma profunda dimensão ética. Ao contrário, somente o eros é concentrado em si mesmo e egocêntrico. Aquele que viveu em plenitude o amor ágape, a misericórdia, chamou os seus discípulos de amigos (cf.Jo 15,15). Dessa forma Jesus estava dizendo a seus discípulos que quem ama tem o direito de ser correspondido.
A experiência da amizade e da Caridade contribuem para a educação do indivíduo, leva-o a descentralizar-se, a crescer na sua dimensão socioafetiva, a superar o critério erótico (da pura atração) e a fazer a experiência da empatia e da compaixão; a amizade nos ajuda a olhar para os outros e nos educa para o cuidado, reciprocidade, respeito pela dignidade do outro.
Porém, na parábola do Bom Samaritano a Caridade é exaltada, sendo colocada como referência desafiadora para os discípulos de Jesus por causa da gratuidade sem fronteiras. De fato, o bom samaritano não era amigo daquele que estava caído, não o conhecia, era um estranho. Mas cuidou dele porque reconheceu sua dignidade ferida e, sentindo compaixão e cheio de espírito de iniciativa, mudou seus interesses, sacrificou sua agenda dedicou-lhe tempo para cuidar dele e pagou a conta. Por isso, ao final Jesus diz ao fariseu que o interrogou: “vai e faça a mesma coisa” (Lc 10,37). A caridade supera as fronteiras da Amizade.
3 – A dimensão educativa da Amizade e da Caridade
Tanto a amizade quanto a Caridade tem um compromisso educativo com o outro. Ou seja, não basta que o outro seja beneficiário, ele também deve ser educado para ser benfeitor. Faz parte da dimensão ética da amizade e da caridade, a experiência da autoeducação e educação de quem é beneficiário do nosso amor, porque a meta da amizade e da caridade é a promoção da plena dignidade humana. Isso comporta um processo pelo qual se estimula o desenvolvimento da liberdade e da vontade (superando o instinto), da responsabilidade, da ternura, da compaixão, da gratuidade, da generosidade, do exercício do espírito de sacrifício pelo bem dos outros. Então, os amigos se educam, crescem juntos, se firmam no amor e na verdade, na justiça e na honestidade. Amigos que fazem o mal são comparsas.
A dimensão educativa da Amizade e da Caridade nos educa para a responsável gestão dos nossos impulsos e paixões, dos nossos gostos e preferências, sentimentos e emoções, levando-nos sempre a colocar como critério principal das nossas escolhas o bem do outro. São Paulo recomenda que cada um não busque a realização dos seus interesses, mas os dos outros(cf. 1Cor10,33; Fl 2,4).“Portanto, busquemos sempre as coisas que trazem paz e edificação mútua” (Rm 14,19). Isso é maravilhoso para a experiência da amizade.
No horizonte da dimensão ética da amizade e da caridade, está também o compromisso permanente do discernimento entre os amigos, do compromisso com a verdade, da defesa incondicional do bem e da honestidade, da prática da não violência em palavras, gestos e atitudes em todas as circunstâncias entre si e com os outros.
Outra experiência significativa também, diz respeito à questão para com a palavra dada; para os amigos não se mente e, incondicionalmente, se preserva as confidências por causa da sagrada confiança. Essa palavra dada pode estar relacionada também à questão econômica, no que se refere à empréstimos; quantas pessoas romperam suas amizades por causa de empréstimos de bens materiais não devolvidos ou de dinheiro não restituído, que acabaram gerando graves prejuízos ao outro.O calote não faz parte da dinâmica da amizade, porque é um ato desonesto e injusto; doação é doação, mas empréstimo é empréstimo; requer o cumprimento da restituição! Quem não honra a palavra dada com seus amigos, está promovendo o risco de perdê-los; assim não mais poderá contar com eles em outras necessidades.
PARA A REFLEXÃO PESSOAL:
1 Por que pouco refletimos sobre a dimensão ética da Amizade?
2 Você já perdeu algum amigo por causa da ruptura da confiança ou de empréstimos não pagos? Como foi a experiência?
3 Em que a experiência da Amizade e Caridade nos educam?