A espiritualidade pascal: a força animadora da paz

Introdução

A celebração da Páscoa também nos remete à experiência da paz; é uma das suas mais profundas consequências. Segundo o livro do Êxodo, a situação em que vivia o povo hebreu no Egito era dramática. Explorados no trabalho forçado, viviam um pesadelo com a existência amargurada, estavam submissos a um cruel plano de redução de natalidade (cf. Ex 1,1-21). Oprimidos e injustiçados, naturalmente, não tinham paz.

A situação ficou insuportável! Então “os filhos de Israel gemiam sob o peso da escravidão, e clamaram; e do fundo da escravidão, o seu clamor chegou até Deus. Deus ouviu as queixas deles e lembrou-se da aliança que fizera com Abraão, Isaac e Jacó. Deus viu a condição dos filhos de Israel e a levou em consideração” (Ex 2, 23-24). A passagem para a libertação foi dom de Deus, promovendo a vida dos humilhados, enchendo-a de alegria e paz.

Também os discípulos de Jesus, antes do encontro com o Ressuscitado, estavam tristes, frustrados, amedrontados, dispersos, descrentes; ao encontrar-lhes, Jesus lhes deseja a paz. A experiência do encontro com o Ressuscitado é geradora de paz, serenidade, alegria, convergência. A páscoa é fonte de paz e esta se torna compromisso permanente da missão da Igreja.

  1. O Messias é o príncipe da paz

Para o mundo a paz é confundida com sossego, conforto, ausência de guerra, quietude, concórdia, bom entendimento. Contudo, nos Evangelhos, a paz é manifestação da graça de Deus presente no coração daqueles que se abrem para a acolhida do Messias. A paz está intimamente ligada à identidade do Salvador e ao dinamismo da sua missão no mundo.

O profeta Isaías declarou que o Messias é o “príncipe da paz” (Is 9,5). Todavia, não era aquela paz como queriam os seguidores do estoicismo grego, que pensavam a paz como “ataraxia”, ou seja, como atitude de total indiferença diante dos problemas do mundo; como atitude de “imperturbabilidade da alma” e “ausência de inquietude”; para o estoicismo o bem-viver significava a simples ascese em busca do autocontrole interior diante dos males do mundo. Mas a paz de Jesus tem outra consistência, dimensão e dinamismo.

Jesus alertou os seus seguidores dizendo-lhes que não tinha vindo para trazer a paz e, sim, a espada (cf. Mt 10, 34). Para Jesus a “paz quietista” do mundo, como pura ausência de conflito, não entrava em sintonia com a dinâmica do Reino de Deus. A paz anunciada e vivida por Jesus é dinâmica, criativa, inquieta, cheia de tensão, instrutiva, comunicativa, compassiva, misericordiosa, ousada e, por isso, de modo algum, se identificava com a pura tranquilidade da mente e ausência de preocupação (ataraxia grega). A paz de Jesus não nos fecha na tranquilidade pessoal e intimista!

Em hebraico, a Shalom, não se reduz a um simples cumprimento, mas é muito mais profunda. Shalom é o conjunto dos bens divinos na mente e no coração de uma pessoa dentro de sua limitação existencial. Shalom é, portanto, harmonia, segurança, prosperidade, felicidade, realização, alegria, serenidade, bem-estar, segundo a vontade de Deus.

A paz deixada por Jesus é terapêutica, pois afugenta o nosso medo e a solidão (cf. Jo 14,27-28). Por isso, Jesus disse a seus discípulos em seu processo de despedida: “não se perturbe o coração de vocês. Não tenham medo” (Jo 14, 27). E prometeu-lhes não deixá-los órfãos (cf. Jo 14, 18) fazendo referência à assistência do Espírito Santo, que é companhia que nos conforta, nos encoraja, nos traz fortaleza, serenidade, abertura, paixão missionária.

  1. Jesus e a promoção da paz

Com as atitudes de Jesus Cristo aprendemos que a promoção da paz implica a transformação do mundo em espaço de evidência do Reino de Deus, como bem ele afirmou aos discípulos de João: “vão e digam a João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos enxergam, os mancos caminham, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as Boas Novas estão sendo pregadas aos pobres” (Mt 11, 4-5).

Para Jesus, portanto, a paz do Reino de Deus é operante, empreendedora, dinâmica, transformadora, restauradora da dignidade da pessoa humana. Os discípulos de Jesus são chamados a serem promotores dessa paz seguindo o dinamismo da vida do mestre, que disse: “bem-aventurados os pacificadores porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5, 9).

Ao enviar seus discípulos em missão, recomendou-lhes a atitude de paz, dizendo: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei, primeiro: “A paz esteja nesta casa!” (Lc 10, 5-6). Tanto antes, quanto depois da ressurreição, aqueles que se encontravam com Jesus faziam a experiência de alívio e, por isso, logo após uma cura, Jesus dizia aos beneficiados: “vá em paz, a tua fé te salvou” (Lc 7, 50; 8,48). A paz está vinculada à experiência da fé!

A atitude de paz deve distinguir o dinamismo missionário dos discípulos; eles são chamados a ser instrumentos de paz e a devem desejá-la a todos por ser dom de Deus. “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança” (Gl 5, 22). A paz, tanto como virtude humana quanto como dom do Espírito de Deus não aparece isolada. Mas é uma virtude e dom consorciados. Então, aquele que é pacífico é rico de virtudes e dons. A respeito disso, muito bem nos alertou o profeta Isaías afirmando que quem não conhece o caminho da paz, também não consegue viver na justiça, pois as veredas da justiça se identificam com o conhecimento da paz (cf. Is 59,8).

Jesus, por ser o “príncipe da paz” (Is 9,5) veio para inaugurar o reino da paz como fora anunciado pelo anjo desde o seu nascimento: “glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados” (Lc 2,14); ainda bebê, o Cristo foi reconhecido como aquele que, por misericordiosa compaixão divina, veio para “iluminar aos que estão assentados em trevas e na sombra da morte; a fim de dirigir os nossos passos pelo caminho da paz!” (Lc 1, 79).

Em suas atitudes revelou-se como a paz personificada através do seu modo de tratar as pessoas: era desarmado, acolhedor universal, sensível, capaz de tolerância e perdão, compassivo, empático, dava atenção para as pessoas mais vulneráveis, capaz de escutar, defendia os injustiçados, libertava os oprimidos, etc.

  1. Justiça e paz se abraçam

Diz o salmo 85 que: “verdade e amor se encontram, justiça e paz se abraçam” (Sl 85, 11), portanto, não há paz sem justiça e nem justiça sem paz. A paz de Jesus (cf. Jo 14, 27) é sinal da presença do Espírito Santo que capacita as pessoas para o amor, para o perdão, solidariedade, partilha, misericórdia, promoção da justiça, verdade. Portanto, não há experiência da paz onde os corações permanecem fechados, agressivos, com ressentimentos, desejosos de vingança, indiferentes às necessidades dos outros e acomodados no próprio egoísmo. Não há paz onde há desonestidade, corrupção, rejeição da dignidade humana, desprezo pela vida.

A paz da comunidade primitiva se manifestava numa grande riqueza de conteúdo: era constituída pela comunhão, experiência fraterna, acolhida dos novos membros, partilha, perdão, solidariedade, oração comunitária, celebração da eucaristia, entusiasmo missionário (cf. At 4, 32-35).

A páscoa é a resposta de Deus à violência e a demonstração da vida plena que vence a violência, toda forma de degradação da dignidade humana e a morte. Por isso, o anúncio da evangelização comporta a denúncia da violência e o testemunho do valor da Vida, sagrado dom de Deus. Na pregação apostólica, a denúncia dos males contra a dignidade da vida e o anúncio da vontade de Deus, são inseparáveis: os ímpios mataram a Jesus, mas Deus o libertou das cadeias da morte (cf. At 2, 22-25); ele, o justo, o santo e autor da vida, foi rejeitado, renegado e assassinado (cf. At 3,15); foi crucificado, mas, a pedra rejeitada pelos construtores se tornou pedra angular (cf. At 4,10-12); mataram suspendendo-o numa cruz, mas Deus o exaltou (cf. At 5,30-32).

Isso significa que não podemos anunciar um Cristo desencarnado e sem compromisso com a promoção da dignidade humana. Animados pela espiritualidade que brota da páscoa, a Igreja torna-se sempre promotora de um dinamismo missionário que acolhe, cura, liberta, defende a vida, a cultura da paz (cf. EG, 89).

A paz é dom de Deus, mas também é responsabilidade humana, por isso, quais discípulos do príncipe da paz somos todos convidados a promover a cultura do cuidado, do respeito, da preservação e promoção da dignidade humana. Recordemos que o Papa Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio, propôs o desenvolvimento humano integral como o novo nome da paz.

Enquanto no mundo houver egoísmo, injustiças, fome, misérias, violência, abismos entre pobres e ricos, negação dos direitos humanos, não haverá a paz.  “A paz não se reduz à ausência de guerra, fruto do equilíbrio, sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca de uma ordem querida por Deus que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens” (PP,76). A Igreja, movida pela Páscoa do Senhor, deverá, continuamente, estar estimulando a inseparável aliança entre justiça e paz.

PARA REFLEXÃO PESSOAL:

  1. Como Jesus promoveu a paz?
  2. O que significa dizer que a paz é dom e, ao mesmo tempo, virtude?
  3. O que significa dizer que “justiça e paz se abraçam”?

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