Jesus chamou seus discípulos do meio de um povo que carregava características sociais e religiosas marcadas por tradições, muitas delas desgastadas pelo exagero ou pelo relaxamento. Os Evangelhos nos mostram desencontros vividos por ele e também pelas primeiras comunidades cristãs, já que elas foram portadoras da novidade radical por ele oferecida (Cf. Mc 7,1-8.14-15.21-23), pois é bom recordar que os textos do Novo Testamento foram redigidos a partir da experiência vivida por tais comunidades, e refletem seus conflitos e as soluções encontradas. As normas rituais, que se confundiam com orientações de saúde pública e de civilidade, a observância do sábado, o relacionamento com pessoas vindas de outras culturas e realidades desafiadoras, tudo isso teve que ser enfrentado e resolvido com a luz do Evangelho de Cristo. Jesus vai ao encontro das opções mais profundas existentes no coração humano, purificando de todos os eventuais excessos ou falhas. Lá dentro, onde Deus penetra, deve acontecer a escolha pelo seguimento do Evangelho, sabendo que Deus conhece as intenções mais profundas de cada pessoa.
Descobrir os segredos de uma vida cristã capaz de iluminar todas as situações e culturas continua sendo uma tarefa para a Igreja em todos os tempos. Para a nossa época, São Paulo VI assim descreveu este desafio: “Importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes termos têm na Constituição Gaudium et Spes, a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus. O Evangelho e, consequentemente, a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. E no entanto, o reino que o Evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a uma determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar de servir-se de elementos da civilização e das culturas humanas. O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas. A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a dar-se se a Boa Nova não for proclamada” (Evangelii Nuntiandi 20).
O Apóstolo São Paulo recebeu a missão de ampliar os horizontes da vida de Igreja, no confronto e no diálogo com os diversos ambientes aos quais lhe coube levar a Boa Nova. Chama atenção seu encontro com os atenienses, aos quais, mesmo não alcançando o sucesso imediato da pregação, foi capaz de dirigir-se com clareza: “Atenienses, em tudo eu vejo que sois extremamente religiosos. Com efeito, observando, ao passar, as vossas imagens sagradas, encontrei até um altar com esta inscrição: ‘A um deus desconhecido’. Pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mão humana. Também não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa; pois é ele que dá a todos vida, respiração e tudo mais” (At 17,22-25).
O Mês da Bíblia, que estamos para iniciar, oferece-nos a oportunidade de tomar contado com a Carta de São Paulo aos Gálatas, com o tema “Todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). O texto-base do Mês da Bíblia nos ajuda a entender que a partir do Batismo e de sermos revestidos de Cristo, somos filhos de Deus, em unidade. Sabemos que também os primeiros cristãos enfrentaram conflitos nascidos das culturas da época e da prática religiosa. Como Jesus e os primeiros discípulos enfrentaram as dificuldades do relacionamento com a religião judaica, justamente as práticas rituais dela remanescentes criaram problemas para os cristãos vindos do paganismo, pois muitos queriam exigir-lhes a norma da circuncisão e as orientações sobre o puro e o impuro. O texto-base do Mês da Bíblia faz notar que um encontro realizado em Jerusalém (At 15) resultou num acordo entre os vários grupos de cristãos, para que os gentios fossem cristãos livres das amarras judaicas.
E explica ainda o texto-base do Mês da Bíblia que o hino batismal do capítulo 3 da Carta aos Gálatas ensina que todos os cristãos são filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, porque todos foram batizados e se revestiram de Cristo. Consequência é que se supera a questão das raças e religiões, pois não há judeu ou grego. Superam-se as contradições sociais, pois a partir de Cristo não há escravo ou livre. E sabemos o quanto valeu o Apóstolo dizer que não há homem e mulher, pois são todos um em Cristo, encontrando-se assim o lugar adequado para o homem e a mulher na vida da Igreja.
Abre-se aqui um caminho para o enfrentamento equilibrado das contradições existentes nas Comunidades cristãs e a nossa contribuição para que as diferenças na sociedade sejam superadas pelo fato de sermos uma só coisa em Cristo. Consequentemente, o mês dedicado à Bíblia, neste ano de 2021, pode ser acolhido como missão, construindo pontes entre as pessoas que eventualmente se sentem diferentes dos outros. Estas diferenças sejam acolhidas como dons a serem postos à disposição uns dos outros. Há uma riqueza a ser descoberta em quem tem pontos de vista diversos dos nossos! Superar os radicalismos que afastam as pessoas é tarefa urgente, inclusive para que a sociedade reencontre os caminhos do diálogo e da conciliação entre os contrários. Onde quer que cada um de nós se encontre, como cristãos conscientes da própria missão, será possível fazer-se um com os outros, descobrir o que os outros têm de bom, colocar em relevo as contribuições vindas de culturas, raças e práticas religiosas das outras pessoas. Para tanto, faz-se necessário que ninguém seja visto como potencial inimigo a ser combatido. Antes, desejamos que se reconheça seu valor e sua dignidade, sabendo que todos fomos criados por Deus e por ele destinados à felicidade eterna, mas também ao respeito e à felicidade aqui nesta terra.
Durante o Mês da Bíblia, cada um de nós aceite a proposta de rezar pessoalmente com a Carta de São Paulo aos Gálatas, assim como buscar as ocasiões de estudo, oração e partilha com outras pessoas.