Para alcançar a misericórdia de Deus

Neste final de semana celebramos com a Igreja o Segundo Domingo da Páscoa, o Domingo da Misericórdia. Importante observar, desde já, que a misericórdia não é uma montanha a ser escalada com méritos e esforços de nossa parte, pelo que dizemos “alcançar” de forma positivamente provocante, para tomarmos consciência daquilo que é esta extraordinária e sobrenatural experiência, destinada, inclusive a transformar-nos em seus apóstolos pelo mundo afora.

Começamos nossa reflexão com um canto que ressoa por todo o nosso país nestes dias pascais: “Por sua morte, a morte viu o fim, do sangue derramado a vida renasceu. Seu pé ferido nova estrada abriu e neste homem, o homem enfim se descobriu! Meu coração me diz: o amor me amou e se entregou por mim, Jesus ressuscitou! Passou a escuridão, o sol nasceu, a vida triunfou, Jesus ressuscitou! ‘Jesus me amou e se entregou por mim’, os homens todos podem o mesmo repetir. Não temeremos mais a morte e a dor, o coração humano em Cristo descansou”. Trata-se de uma estrada de mão dupla!

Quem começa é Deus! A Misericórdia desce do alto, não vem de nós: “Deus, rico em misericórdia, pelo imenso amor com que nos amou, quando ainda estávamos mortos por causa dos nossos pecados, deu-nos a vida com Cristo. É por graça que fostes salvos!” (Ef 2,4). O caminho começa no alto, do íntimo da vida da Trindade, por livre iniciativa de Deus, que envia seu Filho amado, assumindo a condição de servo, feito obediente até a morte de Cruz, para resgatar os que foram escravizados pelo pecado, todos nós! Assim, o primeiro movimento a ser assumido é da total e irrestrita abertura do coração à iniciativa misericordiosa de Deus. Primeira estação na estrada da Misericórdia! E aqui cabe um anúncio: Ninguém é excluído, independentemente de sua história de falhas ou pecados. Sintam-se todos bem vindos na estrada e na casa da Misericórdia de Deus.

Estando tantas vezes com as portas do coração e das casas fechadas (cf. Jo 20,19-31) por nos sentirmos frágeis e medrosos como os discípulos, é hora de tomar conhecimento de que não existem histórias machucadas, depressões, cicatrizes, traumas, crises pessoais, listas de pecados, brigas com Deus e com os outros, confusões na família ou na Paróquia, dúvidas, nada disso impede de ouvir a saudação do Ressuscitado: “A paz esteja convosco!” Este é o segundo passo na estrada para alcançar a misericórdia de Deus, a segunda estação nesta estrada maravilhosa, até porque ele nos conhece, podendo penetrar até o âmago mais profundo de nossa história pessoal, inclusive e de modo especial os nossos pecados, numa viagem amorosa na qual ele já traz empunhada a bandeira do perdão, com a Cruz gloriosa, semelhante àquela que muitos artistas representaram na figura do Ressuscitado.

Abrir os olhos para ver as mãos feridas e o lado de Jesus é o terceiro passo! “Por suas santas chagas, suas chagas gloriosas, o Cristo Senhor nos proteja e nos guarde. Amém!” Assim ouvimos no início da Vigília Pascal. Jesus rezou assim pelos seus discípulos: “Eu lhes dei a tua palavra, mas o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Eu não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do maligno. Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Consagra-os pela verdade: a tua palavra é a verdade” (Jo 17,14-17). Os discípulos de todos os tempos devem reconhecer as chagas de Jesus e também de seu Corpo Místico que é a Igreja sem se escandalizarem. Não somos vacinados contra os problemas, os desafios e as lutas, mas tudo enfrentamos com a coragem da fé. Já aprendemos que “amar a Deus consiste nisto: que observemos os seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados, pois todo aquele que foi gerado de Deus vence o mundo. E esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé. Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? (1 Jo 5,3-5). Na fé, saibamos dar nome a todas as dores físicas, emocionais, psicológicas e espirituais, transformando em amor, unidos a Cristo. E até ouvimos de novo: “A paz esteja convosco!” (Jo 20,21)

Quarto passo: o sopro do Espírito Santo sobre a Igreja é que lhe garante as forças necessárias. Ele tirou de dentro de si a própria força e poder! A missão do Filho amado do Pai, com suas chagas gloriosas, é agora entregue aos Apóstolos reunidos e, neles, à Igreja: “Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, lhes serão retidos” (Jo 20,23). De nossa parte, nasça a absoluta confiança no Sacramento do Perdão e da Reconciliação, fonte inesgotável da Misericórdia. Somos tomados pelas mãos de Jesus Misericordioso e conduzidos à Confissão! Nenhum medo, nenhum fingimento ou mentira, mas abertura total do coração para alcançar a misericórdia, que já estava disponível para cada um de nós no desígnio infinito do amor de Deus.

Entretanto, sabemos que Tomé nos representa, e com ele damos o quinto um passo! É que não somos perfeitos, temos dificuldades para aceitar o testemunho dado pelos outros, ficamos por fora, quando nosso lugar é estar no dia do Senhor no lugar certo da Celebração Eucarística, e daí por diante. Também nossas dúvidas são acolhidas no mar da misericórdia de Deus. É necessário ser honestos, perguntar, querer saber, reconhecer-se frágil diante das palavras dos outros, para depois ter coragem, na semana seguinte, de dizer “Meu Senhor e meu Deus”. Talvez Tomé tenha nos ajudado mais do que os outros, porque estes também viram! (Jo 20,24-29)

E chegamos ao final da Jornada da Misericórdia, o sexto passo, acolhendo com santo orgulho nossa participação na narrativa do Evangelho: “Bem-aventurados os que não viram, e creram!”. Experimentemos a alegria de sentirmo-nos inscritos nos muitos livros e narrativas escritos no correr na história, com os sinais que Jesus continua a realizar na história do mundo, até que ele volte. O sétimo passo, é o mergulho na vida da Trindade, a perfeição, a misericórdia realizada! É a Primeira Carta de São João que nos assegura: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos! Se o mundo não nos conhece, é porque não conheceu o Pai. Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é” (1 Jo 3,1-2).

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