Por uma Igreja siondal: à escuta da Palavra de Deus

Os números 16-24 do Documento Preparatório apresentam duas “imagens” da Escritura que, muito oportunamente, mostram como “o nosso caminho de construção de uma Igreja sinodal deve se realizar”. A primeira imagem é tirada da “cena comunitária” em que sempre acontece a Evangelização de Jesus; a segunda refere-se à experiência do Espírito em que Pedro e a comunidade primitiva reconhecem o risco de colocar limitesinjustificados à partilha da fé. Nestes dois momentos da Revelação o caminho sinodal da Igreja recebe uma inspiração decisiva.

Ao longo de todo o Evangelho, no anúnciodo advento do Reino de Deus, os atores em jogo são essencialmente três. O primeiro é Jesus, que sempre toma a iniciativa, semeando as palavras e os sinais da vinda do Reino, sem “preferência de pessoas” (cf. At 10, 34). Com as suas palavras e as suas ações, Jesus oferece a libertação do mal e a conversão à esperança, em nome de Deus Pai e na força do Espírito Santo. A ação de evangelização e a mensagem de salvação não seriam compreensíveis sem a abertura constante de Jesus ao interlocutor, que os Evangelhos indicam como “a multidão”. O interlocutor de Jesus é “o povo”, o “qualquer um” da condição humana, que Ele coloca diretamente em contato com o dom de Deus e ao chamado àsalvação. Jesus aceita como interlocutores todos aqueles que se aproximam dele: ouve a lamentação apaixonada da mulher cananeia (cf. Mt 15, 21-28), que não pode aceitar ser excluída da bênção que Ele traz; abandona-se ao diálogo com a Samaritana (cf. Jo 4, 1-42), não obstante a sua condição de mulher social e religiosamente comprometida; solicita o ato de fé livre e reconhecido do cego de nascença (cf. Jo 9), que a religião oficial tinha descartado.

Alguns seguem Jesus mais explicitamente, os chamados de apóstolos, aos quais Jesus mesmo chama desde o início, destinando-os à mediação autorizada da relação da multidão com a Revelação e com o advento do Reino de Deus. Graças ao dom do Espírito do Senhor ressuscitado, eles devem salvaguardar o lugar de Jesus, sem o substituir. Jesus, a multidão na sua variedade, os apóstolos: eis a imagem e o mistério acontemplar e aprofundar continuamente, a fim de que a Igreja se torne cada vez mais aquilo que é. Nenhum dos três atores pode abandonar a cena. Se Jesus não estiver presente e outra pessoa ocupar o seu lugar, a Igreja tornar-se-á um contrato entre os apóstolos e a multidão, cujo diálogo acabará por seguir o enredo do jogo político. Sem os apóstolos, autorizados por Jesus e instruídos pelo Espírito, a relação com a verdade evangélica interrompe-se e a multidão permanece exposta a um mito ou a uma ideologia a respeito de Jesus, quer o aceite quer o rejeite. Sem a multidão, a relação dos apóstolos com Jesus corrompe-se numa forma sectária e autorreferencial de religião, e a evangelização perde a sua luz, que provém da revelação de si que Deus dirige a quem quer que seja, diretamente, oferecendo-lhe a sua salvação.Além desses atores, há o ator “extra”, o antagonista, que traz à cena a separação diabólica dos outros três. Diante da perspetiva inquietadora da cruz, há discípulos que vão embora e multidões que mudam de humor. A ameaça que divide e, por conseguinte, impede um caminho comum, manifesta-se indiferentemente sob as formas do rigor religioso, da injunção moral, que se revela mais exigente que a de Jesus, e da sedução de uma sabedoria política mundana, que se julga mais eficaz que um discernimento dos espíritos. Para evitar os enganos do “quarto ator”, é necessária uma conversão contínua. A este propósito, é emblemático o episódio do centurião Cornélio (cf. At 10), que constitui um ponto de referência crucial para uma Igreja sinodal. É o que veremos em outra oportunidade.

Colunistas