Um pequeno grande livro (33)

Hoje veremos o que o monge beneditino Marcelo Barros escreve sobre Dom Hélder Câmara na carta de nove de maio de 2020 endereçada por e-mail ao pastor batista Henrique Vieira. A carta é longa e consta, além da introdução, de três partes. É na terceira, intitulada a herança espiritual de Dom Hélder Câmara, que ele fala sobre o saudoso arcebispo. Ele começa lembrando-lhe: “você disse que gostaria que eu falasse mais da minha relação com Dom Hélder Câmara.” E relata que, em maio de 1967, quando tinha vinte e dois anos e era monge no mosteiro de Olinda, recebeu o recado de que o arcebispo de Olinda e Recife, isto é, Dom Hélder, queria falar com ele e pensou que fosse trote. Logo depois ficou sabendo que era mesmo Dom Hélder. Tendo conhecimento de que o monge frequentava igrejas evangélicas e mantinha amizade com o pessoal de religiões afro-descentes, pediu-lhe para ser seu secretário e assessor para relações com outras igrejas e outras religiões. Relata que respondeu a Dom Hélder: o senhor me pede mais do que eu posso fazer. Razão: ele não tinha curso de teologia e se achava muito verde para o cargo. Dom Hélder sorriu e lhe respondeu:
– “Você tem o mais importante, que é o amor.”

A partir desse dia, durante nove anos, se Dom Hélder não estava viajando, toda quarta feira às oito horas Marcelo Barros tinha reunião com ele na salinha da casa que o pastor Henrique Vieira, ao vir ao Recife, visitara. Uma vez ou outra Dom Hélder chamou-o para acompanhá-lo em alguma missão pelo território do Recife ou fora. Marcelo acabou também fazendo parte da coordenação da pastoral da juventude. Em 1969 Dom Hélder ordenou-o padre.

Marcelo Barros relata, nessa carta, que certa vez a igreja Luterana do Recife fez aniversário e organizou um culto festivo. Como Dom Hélder estava viajando, pediu-lhe para representá-lo nesse culto levando uma carta sua ao pastor que o coordenou. No tal culto o pastor sentou a pua na igreja católica. Chamou o papa de anti Cristo e afirmou que bispos e padres católicos eram todos idólatras e corruptos. Marcelo ouviu tudo quieto, sentado no primeiro banco. Ficou até o final e se despediu educadamente. Assim que encontrou Dom Hélder contou-lhe o que tinha ocorrido e o que achara. Resposta de Dom Hélder:

– “O meu pensamento é que isso que você viveu lá no culto luterano foi café pequeno em relação ao que, no tempo da Reforma e no decorrer dos séculos, eles sofreram por parte da Igreja Católica. Agradeça a Deus por ter podido viver esse momento de humildade e os irmãos terem podido lhe dizer, cara a cara, o que pensam. Quanto ao conteúdo do que disseram, vamos pedir a Deus para que possa não ser totalmente verdade. Mas só Deus pode julgar.”

Marcelo conta que ficou desconcertado e só depois entendeu melhor. Saiu de lá com uma das circulares que Dom Hélder sempre escrevia após suas vigílias de oração na madrugada. Uma delas continha um de seus pequenos poemas, este:

“Diante do colar belo como um sonho Admirei, sobretudo, o fio que unia as pedras E se imolava anônimo, para que todos fossem um.”
Dias depois de Marcelo lhe ter dito que, mesmo com todas as regras do mosteiro, fazia questão de ser e parecer livre, Dom Hélder mostrou-lhe a seguinte frase: “quem pode vangloriar-se de ser livre? Quem não tem ainda prisões secretas, cadeias invisíveis que oprimem mais quanto menos aparecem?” Marcelo conta quem em 1977 ele e sua pequena comunidade de Curitiba se transferiram para Goiás, passando a morar longe de Dom Hélder mas sempre que voltava ao Recife, visitava-o. Viu-o pela última vez, em agosto de 1999, quinze dias antes de seu falecimento. Tinha noventa anos e lutava contra uma flebite que lhe inflamara as veias das pernas. Embora a mente se mantivesse lúcida, o corpo estava muito frágil. Relato desse encontro: “eram seis da tarde e eles estavam sentados à mesa na qual nos anos setenta sempre se reuniam. Nem conseguia levantar a cabeça.

Perguntei-lhe se me reconhecia e ele acenou levemente que sim. Quase não conseguia falar. Pedi-lhe uma palavra de orientação mas ele não a deu. Ao me despedir fiz o gesto de beijar-lhe a mão. Ele segurou a minha e vi que queria dizer alguma coisa. Inclinei a cabeça e ele sussurrou: “não deixe cair a profecia”. Aqui termino minha Miscelânea de hoje. Shalom!

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